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Inês Negra, unha pelea, e tudo en pelota, ou como Melgaço voltou a ser Português!


Quando os tempos eram de guerra, as mulheres minhotas do povo, em especial as que viviam em lugares de fronteira marcada pela grande linha de água que é o rio Minho, teriam uma capacidade extra de resiliência: as guerras levavam-lhes os maridos, a comida escasseava, tudo era difícil. Esta é a história de uma mulher que se enfrentou com outra em plena implantação do Reino de Portugal, quando D. João I cercou a vila de Melgaço, até então leal a Castela.

 

Existem algumas histórias no livro dos feitos dos portugueses que estão permeadas por mito, estórias e fábulas, algumas delas envolvendo mulheres astutas, corajosas ou uma mistura de ambas as qualidades: Deu-la-Deu Martins (Monção 1369), Brites de Almeida (a padeira de Aljubarrota, 1385), Inês Negra (Melgaço 1388). Estas surgem no imaginário colectivo de uma nação que se consolidava, e serviriam para exacerbar as qualidades dos concidadãos por forma a incitar outros e outras a seguirem-lhe o exemplo e pegarem em armas, organizarem milícias e matar o inimigo, se preciso fosse! Não é por isso de estranhar que muitas vezes a existência real destas mulheres se confunda com a lenda, o que não conta, desde logo, com o suporte dos historiadores que se debruçam sobre a Idade Média.

Sabemos também que, apesar da possibilidade da sua não existência, o que estas mulheres encarnam é o espírito de resiliência das comunidades onde teriam vivido. Em resultado disso, o registo por Fernão Lopes da conquista de Melgaço pelas tropas de D. João I em 3 de Março de 1388 refere uma unha pelea (uma luta em que os contendores se agarravam pelo cabelo (pelo, daí que a palavra em castelhano para lutar seja "pelear") que terá existido entre duas mulheres, ambas de nome Inês (criado pelo Conde de Sabugosa numa publicação de 1918).



O que sim parece ser factual são os pormenores que envolveram o cerco a Melgaço por parte das tropas do recente rei português, D. João I, que pretendia, de uma vez por todas, acabar com os vestígios de terras a norte que mantivessem obediência a Castela. Melgaço era uma delas, onde um grupo de nobres, querendo desfrutar dos privilégios de estarem junto do poder que haviam conquistado pela aliança com Álvaro Pais Sottomayor, o alcaide da vila após a crise de 1383-85, com a morte de D. Fernando e a traição de Dona Leonor de Teles, sua filha.


Contava Fernão Lopes, que as tropas de D. João I seriam "hũas mill e quinhemtas lamças e muita gemte de pee”, assentando arraial longe da vila. E esta luta foi dura, tendo havido várias escaramuças entre a povoação sitiada e as tropas, que usaram escadas, trabucos e torres de assalto. O cerco durou 52 dias, e após recuos e avanços, alguns feridos e mortos, os nobres fieis a Castela acordaram render-se, tendo D. João I sido implacável na exigência de que saíssem "en pelota" pelo facto de terem anteriormente exigido condições de rendição consideradas ultrajantes pelo monarca.


É precisamente neste espírito que se deve entender a lenda da Inês Negra, a que a belíssima estátua do Mestre José Rodrigues dá expressão corpórea. Está situada à entrada da Muralha de Melgaço, e como qualquer obra do mestre da escultura portuguesa, recentemente desaparecido, a expressividade das personagens capta a essência do momento, ainda que curiosamente transmita uma sensação de compaixão pela Inês, a Arrenegada, que seria fiel aos nobres portugueses que estavam ao serviço de Castela. O tom castigador da Inês da arraia miúda funciona como uma espécie de vingança dos maus-tratos infligidos a todos os opressores.


Melgaço tem muitos motivos de visita românticos e a que voltaremos numa próxima publicação. Mas este ajuste de contas entre duas mulheres, mas mais do que isso, entre duas formas de entender o poder e as fidelidades são bem ilustrativos da riqueza simbólica e romântica do nosso Alto Minho, território no qual se foi forjando a ideia de uma nação, construída com lendas, lutas e muito sangue suor e lágrimas, sobretudo anónimas. Porque a Inês Negra poderia ter sido qualquer mulher do Minho.
























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